Caso Fox: quando a legislação é atropelada pela realidade
Enviado em 20.01.2020

Caso Fox: quando a legislação é atropelada pela realidade

O que uma possível alteração legislativa, capaz de permitir a integração vertical de toda a cadeia de TV por assinatura, significaria para a Internet?

As discussões recentes relacionadas ao mercado de TV por assinatura servem como “fermento natural” para produzir avanços regulatórios e garantir a construção de um regime jurídico estável.

Tudo se inicia em 2017, quando o CADE, sob o prisma concorrencial, autorizou a fusão entre a AT&T (controladora da Sky) e a Time Warner (atual Warner Media), condicionando à interdependência das operações das empresas no Brasil, por 5 anos. Agora, sob o prisma regulatório, cabe a Anatel decidir se a operação pode ou não ser aprovada em face da Lei do SeAC.

Vamos entender: a Lei do SeAC estabeleceu a autonomia das atividades próprias da cadeia de valor do mercado de TV por assinatura (produção, programação, empacotamento e distribuição), impondo limites à participação societária de empresas de distribuição (leia-se, prestadoras de serviços de telecom) em produtoras e programadoras, com sede no Brasil. Essa chamada vedação à “propriedade cruzada” está na mira do Legislativo, que pretende revogar os artigos 5° e 6° da Lei do SeAC, coincidindo com o momento histórico de decisão do Conselho Diretor da Agência sobre o caso concreto da fusão das empresas.

E o que uma possível alteração legislativa, capaz de permitir a integração vertical de toda a cadeia de TV por assinatura, significaria para a Internet? Antes de responder, precisamos entender qual foi a razão original do Estado para regular a comunicação de massa. Historicamente, os meios tradicionais de comunicação de massa consolidavam a opinião pública, serviam de termômetro para as angústias sociais e impactavam a própria soberania do Estado. Até então, nada mais natural que regular esse mercado e estabelecer restrições.

Entretanto, hoje em dia, diante do advento exponencial das redes sociais e da fluidez da comunicação entre os indivíduos pela internet, questiona-se qual a real dimensão de poder dos meios de comunicação de massa tradicionais. A regulação atual, no que tange à continuidade da proibição da verticalização da cadeia, parece perder o sentido. O modelo vigente da TV por assinatura já não encontra a mesma receptividade no mercado consumidor. O regime de empacotamento, hoje, apresenta-se como amarra custosa e sem sentido para o cliente. O consumidor quer uma conexão de dados de qualidade para dar vazão ao seu anseio de contratação livre do conteúdo de sua preferência.

Como se não bastasse o timing da fusão dessas empresas, aquele “fermento natural” é acrescido de um segundo elemento: a denúncia da Claro contra a Fox e a Topsports, perante a Anatel, questionando os modelos de venda de conteúdos lineares em plataformas OTT, via internet, mediante assinatura mensal. A matéria de fundo é clássica: essa oferta pelas programadoras é uma prestação de serviço de telecom (SeAC) ou uma oferta de serviço de valor adicionado (SVA)?

A primeira reação da Agência, ao expedir medida cautelar parcialmente favorável a Claro, restou, até o momento, suspensa pelo Poder Judiciário. A ABRINT posicionou-se veementemente contrária à decisão precipitada da Anatel, apresentando suas contribuições pelo processo de tomada de subsídios instaurado e reforçando a premissa da não ingerência da regulação sobre a Internet.

Seja via discussão da fusão das empresas, seja por meio da disputa entre operadora de telecom e serviço OTT, o respeito à diferenciação, já positivada na lei, entre serviços de telecomunicações e serviços de valor adicionado é o único caminho para se garantir segurança jurídica suficiente para a perpetuação dos investimentos e da inovação na Internet. Qualquer tentativa de alinhamento horizontal desses conceitos seria nefasta para o país e especialmente para o seu mercado de banda larga.

Apenas a avaliação conjunta destes dois elementos promove mais maturidade regulatória e institucional para o setor e afasta a Anatel do risco de se incorrer naquilo que o economista Alfred E. Kahn enquadraria, possivelmente, como “tirania das pequenas decisões”.

Assim, propomos que, em vez de se impor uma determinada medida regulatória para resolver um problema específico, que a discussão se dê na esfera do exercício do Poder Legislativo, de forma a não comprometer valores inerentes à própria arquitetura da Internet, enquanto uma Rede livre e colaborativa, e respeitando-se a distinção entre o serviço de telecom e o serviço de valor adicionado.

O palco das discussões sobre a TV por assinatura deve iluminar a continuidade da Internet como ambiente não regulado. Estamos certos de que a emergência de novas formas de comunicação baseadas na Internet torna obsoleta a construção de políticas regulatórias que amarram regimes jurídicos a implementações tecnológicas específicas.

Não nos esqueçamos que o interesse público sobre a regulação da Internet já foi objeto de intensa discussão quando da elaboração do Marco Civil, ao sedimentar as premissas de segurança, privacidade e neutralidade de rede. Qualquer ingerência mais extensa sobre o universo da Internet não estaria alinhada à essa expectativa social e, nesse sentido, deslegitimaria o papel da regulação de proteção de valores tutelados na nossa democracia.

Também, o desenvolvimento de novos serviços potencialmente substitutivos em relação aos serviços “tradicionais” de telecomunicações não justifica, por si só, a regulação. Além de não ter sido esse o propósito da Recomendação D.262 da UIT, o mercado de telecom mostra que a crescente demanda do SVA sobre a infraestrutura vem sendo resolvida de forma criativa e inovadora, seja através de novos modelos de negócios e parcerias, seja mediante a adoção de managed services e CDNs, que otimizam a capacidade de rede e garantem uma experiência ainda melhor para o cliente.

E não seria esse o propósito último da regulação? A regulação deve preservar os direitos fundamentais e garantir que o desenvolvimento tecnológico também sirva ao propósito de aprimorar o desenvolvimento da personalidade e das condições econômicas e sociais dos indivíduos e coletividades, e não o contrário. Nosso Marco Civil seguiu tal motivação e estabeleceu as bases para a promoção das liberdades e dos direitos na Internet.

Eventual iniciativa de regulação repressiva da Internet e dos serviços de valor adicionado padeceria de caducidade precoce ou colocaria o Brasil na contramão da inovação.

Câmara Abrint Mulher – A Câmara Abrint Mulher é um movimento associativo empresarial, organizado por mulheres, com o objetivo de estimular as melhores práticas de gestão e fortalecer a participação das mulheres no setor de telecomunicações.

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