O coração da convergência e o papel da regulação
Enviado em 30.04.2021

O coração da convergência e o papel da regulação

A Anatel encerrou o ano de 2020 com uma das mais amplas e relevantes consultas públicas de Tomada de Subsídio – CP 65/2020 […]

A Anatel encerrou o ano de 2020 com uma das mais amplas e relevantes consultas públicas de Tomada de Subsídio – CP 65/2020 – buscando um verdadeiro exercício de reflexão sobre a simplificação regulatória diretamente associada à convergência de uso das redes para oferta de serviços.

Para iniciar nossa avaliação, pode-se afirmar que todo o contexto regulatório embasado na Lei Geral das Telecomunicações (LGT) é, hoje, fortemente marcado pela separação entre os serviços, separação essa que atinge os tipos de autorizações e outorgas, a forma de licenciamento de estações, a atribuição de espectro, a avaliação de poder de mercado relevante, a apresentação das ofertas públicas de referência, entre outras questões. Ocorre que essa formatação parece não ser a mais adequada para endereçar redes convergentes, serviços OTTs, novos modelos de negócios em IoT, redes privadas, redes abertas, ofertas de atacado neutras, tanto para redes fixas, quanto para móveis, entre outras questões atuais.

E esse é o desafio: emprestar ou não conceitos? Manter ou não outorgas? Como ir além para aquilo que ainda parece ser desconhecido do ponto de vista da regulação?

Como reflexão principiológica, o desenvolvimento de políticas de convergência por meio de órgãos regulatórios pode se dar sob diferentes formatações sendo, uma delas, a modificação da regulação para antecipar a convergência ou favorecer novas tecnologias. O caso emblemático que pode ser citado nesse sentido foi a modificação do tratamento do serviço voip pelo regulador australiano – ACIF – que culminou na plenitude do serviço tal como os demais serviços de voz fixos.

De qualquer forma, a convergência sempre altera a relação entre os atores privados e o Estado, bem como do comportamento desses mesmos atores com a própria sociedade. Um outro tipo de formatação seria a alteração regulatória a fim de enquadrar uma nova realidade tecnológica já patente. Como exemplo, nesse segundo caso, pode-se citar as mudanças regulatórias promovidas na Espanha que anteciparam a abordagem das relações entre operadoras, especialmente quanto a regras de interconexão, em face da convergência IP das redes, simplificando e otimizando as topologias. Quase um sonho quando se pensa no Brasil, nas suas raras interconexões em SIP-I ou no plano de numeração ainda distante para o SCM.

No final das contas, o que se percebe é que a regulação se baseia em escolhas e essas escolhas, ao mesmo tempo em que alteram o rumo do desenvolvimento tecnológico do país, promovem ônus e níveis de conformidade e eficácia distintos. O ajuste dessas escolhas passa, inevitavelmente, pela avaliação atual da composição do nosso mercado e da antecipação de rearranjos entre as operadoras presentes.

Alguns ensinamentos são muito bons para se avaliar a convergência em face das políticas regulatórias. Bar e Sandvig1 já abordavam duas perguntas clássicas: (i) a escassez dos meios e recursos empregados e (ii) o fenômeno da substituição entre os serviços. Esses dois critérios, por muitas vezes, justificam a continuidade de “ilhas” políticas e regulatórias e, em outras situações, permitem a simplificação e a convergência entre os serviços. O exemplo clássico de “ilha” seria a diferenciação entre radiodifusão e telecomunicações. O ano de 2021 será desafiador, nesse ponto, para a Anatel e eventual consolidação de competências.

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No caso brasileiro, não se pode deixar de lado a conformação da atual LGT, no sentido de se evitar uma flexibilidade forçosa não prevista na Lei. Essa conformação que deve ser respeita é justamente a composição do ecossistema sob a forma de camadas que busca extrair do modelo da internet a sua filosofia de funcionamento.

Para Marcus e Sicker2, as camadas contemplam a distinção entre transmissão, aplicação e conteúdo. A abordagem desses autores caminha no sentido de que o regulador deve atuar em prol da competição. Esse ensinamento é perfeito com relação à camada de transmissão, em que o recurso limitado e que impacta negativamente a concorrência é o espectro. A convergência caminharia no sentido da regulação flexibilizar formas de acesso à esse recurso, convergindo a prestação dos serviços, nas suas diversas modalidades, com o acesso a esse recurso caro e escasso. Exemplificando: não faz sentido que a outorga do uso de radiofrequência licenciada se resuma às operadoras SMP e não às operadoras SCM. Outra consideração para a camada de transmissão é a substituição dos serviços e a convergência das ofertas.

A existência de redes dedicadas não se mostra mais essencial à prestação dos serviços. Sob a óptica das redes, é indiferente qual serviço foi utilizado pelo cliente para transmitir sua informação. Não há dúvidas de que a convergência e a simplificação regulatória devem caminhar no sentido de constatar que a estrutura verticalizada de redes cedeu espaço à horizontalidade, ou seja, a lógica de que diferentes redes estão igualmente aptas a prestar uma gama de diferentes serviços.

A própria evolução da comutação por circuito para comutação por pacotes já inaugurou uma reestruturação da otimização das redes e, nesse momento, seus debates se estendem à substituição dos serviços, sob o ponto de vista do consumidor final (e não mais apenas sob o aspecto da operadora de telecomunicações). No Brasil, para apimentar mais essa questão, a substituição entre os serviços está intimamente associada à capacidade financeira desse mesmo consumidor. Talvez, um caso clássico em que a demanda atropela a realidade da regulação.

Cumpre ressaltar que as discussões anteriores à CP 65/2020 no âmbito da Anatel limitaram-se às considerações de uma outorga única para prestação de serviços de interesse coletivo, permanecendo a existência de mais de um serviço de telecomunicações. O passo, agora, é ir além, em direção à efetiva convergência dos serviços. Esse “ir além” demanda a avaliação das outras duas camadas em face da LGT, como se esclarece na sequência.

Para a camada da aplicação, a LGT traz duas questões bastante relevantes para a consideração da convergências: tanto para fomentar a competição, quanto para promover metas sociais importantes existe a assimetria jurídica com relação aos serviços prestados (regimes público e regime privado nos Título II e Título III da LGT) e separação de serviços que dão suporte à uma rede de telecomunicações (serviços de valor adicionado, art.61). Nesses dois aspectos, eventual flexibilização da LGT traria impactos significativos sobre o ecossistema do mercado, sem que haja contrapartida evidente do ponto de vista de eficiência da medida ou mesmo desenvolvimento de novas tecnologias. Indo além, no caso dos serviços de valor adicionado, dentre eles o serviço de conexão à internet, qualquer mudança no status atual repercutiria negativamente, e de forma avassaladora, sobre a inclusão digital promovida pelos provedores regionais Brasil afora.

Mais complexo é a avaliação da camada de aplicação, cuja avaliação do regulador deve ser precedida da análise global do quanto uma mudança representaria na estrutura atual da competição. Essa análise global contempla questões tributárias, inclusive, sob pena de associar à convergência à um desastre completo na oferta dos próprios serviços. Como paralelo, cumpre destacar a convergência entre o mercado de TV por assinatura e o mercado de oferta linear de canais de TV por meio de streaming. Aqui, muito embora haja necessidade prévia de alteração legal, a convergência parecer ser natural. Já com relação à diferença entre a oferta de serviços de telecomunicações e a oferta de conexão à internet, conforme já dito acima, deve essa ser preservada, sob pena de impactar a segurança jurídica de diversos mercados e serviços, na medida em que um faz uso da rede do outro.

Também, no mesmo sentido, não é legítima a incidência de regulação estatal sobre a internet, tendo em vista que para muitos um elevado grau de liberdade de expressão e ausência de regras quanto a conteúdos veiculados são elementos centrais para sua caracterização como espaço democrático de discussão pública. A não regulação não implica, necessariamente, em prejuízos a direitos fundamentais.

E assim caminha a discussão da regulação e da convergência. Um universo de debates quase infinito, que demanda clareza e exige atitude responsável por parte do regulador.

1 BAR, François; SANDVIG, Christian. (2009). Política de comunicações dos Estados Unidos pós-convergência. In: Revista de Direito, Estado e Telecomunicações. 2 Marcus, J. Scott; Sicker, Douglas C (2005). Layers Revisited. Presented at TPRC

Câmara Abrint Mulher

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