Não há qualquer dúvida sobre a relevância da ANATEL avaliar e regular os direitos e deveres dos usuários dos serviços de telecomunicações, bem como as relações entre os atores do ecossistema digital, em especial quanto ao uso adequado e responsável de redes de telecomunicações.
É neste âmbito que temos visto um volume crescente de debates – promovido, na maioria, pelas grandes operadoras – acerca do conceito de fair share, isto é, se as plataformas digitais também devem arcar com os custos do tráfego de seus conteúdos sobre as redes de telecomunicações.
Para fins de debate, é importante deixar muito claro desde o começo: a Abrint é contrária ao estabelecimento de política de fair share e entende que a própria nomenclatura não traduz o cerne das discussões. Do ponto de vista técnico, o mais adequado seria a utilização do termo SPNP – Sending Party Network Pays, para retomar os debates de cobrança de tráfego de origem que transita sobre as redes de telecomunicações. O SPNP é uma forma de regulação de preço que se aproxima de efetivo subsídio cruzado entre redes e conteúdo.
As discussões sobre a atualização normativa da LGT e o aprimoramento dos deveres das empresas de conteúdo e heavy users podem (e devem) ser feitos, sem que se confunda com regulação de preços. A Abrint entende que, mais do que nunca, o princípio da neutralidade deve ser respeitado e que o SPNP é uma forma artificial de intervenção regulatória capaz de prejudicar o fluxo de acesso livre ao conteúdo, a partir de discriminação de preço, pela empresa de telecomunicações, não ajustada com a origem do tráfego.
O impacto desta linha de regulação é absolutamente temeroso para o funcionamento da lógica de trânsito e peerings, remetendo ao aumento significativo de preços de trânsito e da dependência de rotas internacionais. O resultado é a piora da qualidade dos serviços e, potencialmente, aumento de preços ao usuário final. As sessões BGP que hoje garantem o acesso livre aos mais diversos conteúdos na internet, passariam a representar 8.957 camisas de força sobre os sistemas autônomos nacionais, resultando em degradação de acesso no Brasil. Já há experiências internacionais que demonstram a ineficiência regulatória do SPNP e a repercussão negativa sobre a disponibilidade de conteúdo, em especial na Alemanha e na Coréia do Sul. Quanto maior o número de sistemas autônomos na região, mais danoso é o impacto.
Os defensores desta regulação comumente se utilizam do argumento do crescimento exponencial da demanda de dados, promovido em larga parte por um número reduzido de plataformas digitais. Esse crescimento demandaria novos investimentos sobre a capacidade já instalada, limitando a capacidade de expansão de rede e trazendo reflexos sobre o retorno de investimento das operadoras de telecomunicações.
Frente a isso, é importante destacar que o ecossistema digital se alimenta das duas pontas (conteúdo e conectividade), havendo uma interdependência sinérgica relevante. Embora a demanda de dados seja crescente, ela também é previsível – especialmente pós-pandemia, com a mudança de hábitos e padrão de uso das redes e a infraestrutura de redes ópticas – e a infraestrutura de redes ópticas já acompanha as projeções de incremento de tráfego. Ademais, o volume de custos atuais associados ao aumento de tráfego é pequeno se comparado aos demais custos de gestão, compartilhamento de postes e manutenção da própria operação.
A ausência de retorno de investimento não significa, necessariamente, falha de mercado ou externalidade negativa que deva ser endereçada pelo regulador. A intervenção regulatória pensada no sentido de se adotar mecanismos de remuneração de redes não é adequada à dinâmica do mercado, mesmo que o regulador tenha por objetivo garantir o bom desempenho das redes.
Por fim, um segundo argumento muito comum é que as grandes plataformas digitais não fazem sua “justa contribuição” aos investimentos para atualização e manutenção das redes. Aqui também parece haver uma visão equivocada sobre o funcionamento deste ecossistema digital.
As grandes plataformas digitais de streaming e plataformas digitais de buscas realizam diversos investimentos no sentido de aprimorar a experiência do usuário na fruição do seu serviço. Hoje em dia, a proximidade do conteúdo do usuário é fundamental, garantindo uma experiência diferenciada no acesso. O volume de investimentos dessas plataformas por CDNs é significativo e vem crescendo de forma acelerada nos últimos anos – evidência disto é que seu uso já é massificado dentre os provedores regionais.
Essas plataformas também fazem uso de streaming adaptável para ajustar a qualidade de vídeo e áudio conforme a velocidade de conexão de banda larga do cliente e as condições da rede em tempo real, além da codificação inovadora de vídeo. Estes investimentos são diretamente aproveitados pelas empresas de telecomunicações e pelos usuários dos serviços.
As discussões da regulação deste ecossistema digital, sob a competência regulatória da ANATEL, são necessárias e relevantes. Contudo, não há evidências que demandem intervenção ex-ante (isto é, que se antecipa aos acontecimentos do mercado), especialmente em relação a modelos de remuneração de tráfego de origem. A Abrint entende, sem sombra de dúvida, que a regulação responsiva é o meio adequado para abordar o multilateralismo próprio do ecossistema digital.
A responsividade é ideal considerando tanto a legitimidade da regulação, quanto a efetividade do processo regulatório. Neste momento, a intervenção regulatória deve ser mínima, caminhando no sentido estrutural do funcionamento do mercado, assegurando a competição justa e equilibrada, de modo responsivo a eventuais abusos de poder de mercado e dificuldade de acesso a insumos essenciais e escassos.
Abrint Mulher